segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Vivendo o crochê, tecendo a vida...

Cresci vendo minha mãe fazer crochê. Ela, tão reclusa, tão pouco afeita as coisas mundanas, tão devota do trabalho racional e bem executado ( herança dos ensinamentos do vô Gerardo), transplanta para suas produções artísticas elementos do mundo, do mundo que pouco conheceu, que pouco contemplou(e Paula tem tempo de contemplar o mundo?). Assim, as cores, as formas, flores e pássaros aparecem harmonizados nas toalhas de mesa, bicos, vestidos, saias e blusas que confeccionou. Nunca me esquecerei de uma toalha de mesa escura, de onde saltavam gansos majestosos, que ela fez, depois de quebrar a cabeça e as pestanas por vários dias. Era esplêndida! Se não me engano, foi feita para Socorro Leite, aquela conhecida nossa de Maranguape que vendia sapatos guardados e expostos em seu Corcel azul (ou verde?).
Vencendo a falta de jeito de “jogar conversa fora” e fazer novas amizades, teceu muitas de suas relações a partir do ofício de fazer crochê. Foi assim com minha madrinha Isa, grande amiga e companheira de ofício, e mais recentemente com Dona Celestina, sua amiga e vizinha. Sentada na calçada de nossa casa em Maranguape, via passar vizinhas e parentes, cumprimentando a todos (do jeito que Paula cumprimenta!), sem tirar os olhos de seu “trabalho”.
Leva para o crochê seu jeito de entender e levar a vida. Com profundo rigor e precisão, sem se permitir um pontinho sequer errado. Vi muitas vezes desmanchar linhas e mais linhas concluídas, porque havia um erro. Ninguém iria notar! Mas o diacho é que ela sempre notava!
Mas há algo em seu crochê que se distingue desse seu jeito de ver e levar a vida. Refiro-me ao uso das cores: com poucas exceções, ela abusa das cores! Laranja, vermelho, roxo? Não parecem combinar com minha mãe que sempre usou e comprou para mim e para minha irmã somente calcinhas brancas ou beges! Mas será que essas cores, de fato, não dão pistas sobre uma alma, até certo ponto transgressora, que ela camufla nas calcinhas beges?
Entre pontos “altos e baixos”, minha mãe foi, ao longo dos seus 68 anos, “vivendo” seu crochê e “tecendo” sua vida. Conta-nos que começou no ofício ainda menina, tricotando sapatinhos de recém nascidos. Não sei bem quando trocou as longas e elegantes agulhas de tricô pelas delicadas agulhas do crochê. Vida plena, belos trabalhos! Minha casa e guarda-roupa familiar guardam vários exemplares do trabalho de minha mãe; mais do que artefatos, encontro neles retalhos de sua existência, tecidos com delicadeza, retidão e verdade.

Berenice

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